Crônica do Dia
Neste sábado de manhã, recebi um prestador de serviços que me atende com frequência para realizar um trabalho em um de meus cômodos repletos de bens culturais. Ao subir uma escada, num ambiente pequeno e um tanto apertado, ele esbarrou numa caixa de livros da Grove’s Dictionary of Music And Musicians que eu recebi do célebre médico e amigo Dr. Luiz Gastão do Serro Azul, de inestimável valor afetivo, que estava assentada com relativa segurança na prateleira (como ele conseguiu fazer isso, é um enigma até fácil de se decifrar) e derruba-la de uma altura de cerca de dois metros. A pobre caixa veio ao chão, espatifou-se, o invólucro protetor da coleção rasgou/descolou e as quinas inferiores de TODOS os livros e suas respectivas páginas ficaram indelevelmente achatadas/amassadas.
O que fazer numa hora dessas? Só destilar de maneira espirituosa – e olhem que é possível ser espirituoso numa hora dessas por quem se tem amizade e gratidão pelos ótimos serviços prestados esses anos todos – toda a minha furibunda indignação à criatura ante o fato, exortando-o para que tome mais cuidado das próximas vezes, sobretudo com o bens de seus demais clientes – algum deles pode se irritar de verdade.
Com tudo isso, apesar dos pesares, pude contar com a magnânima e diligente solidariedade de minha gatinha Nenê, que pareceu adivinhar como me senti velando com desvelo minha infeliz caixa de livros…
Esse episódio me fez aprender duas lições, uma de ordem prática e outra de ordem espiritual. A primeira devo ao meu amigo Alexandre Agabiti Fernandez, que, ao complementar magistralmente a solidariedade de Nenê e demais amigos, me sugeriu cuidado com prestadores estabanados, observando-os com olhos de lince e acompanhando-os diligentemente para que não vilipendiem relíquias prenhes de importancia, significado e alma.
A segunda devo a mim mesmo, baseada na vivência e no coração: um incidente desse tipo jamais justifica a perda de uma colaboração ou amizade. As pessoas não cometem “desastres” porque querem, muito menos pra te prejudicar – é tão somente uma infelicidade, um infortúnio. Em que ainda permanecem os objetos para serem aproveitados, tão logo passe o transe, permanecerá o folclore. Se você for tão cioso de perfeição (sic), mande restaurar. E, nesse momento, me vem a lembrança da querida amiga Sylvia Negrelli dizendo dans tous ces états, diga-se, no estado estropiado que estiver, tem seu valor“. A vida é bela!